Pedaço de crânio fossilizado foi encontrado em 2014; tecnologia ajudou a reconstruir estruturas da anatomia e pesquisadores constataram que se trata de uma nova espécie
Uma tartaruguinha com apenas 15 centímetros de comprimento viveu entre ferozes crocodilos e dinossauros gigantes há 85 milhões de anos no interior de São Paulo. O pequeno réptil acaba de ser revelado pelo estudo de um pedaço de crânio fossilizado com cerca de dois centímetros, encontrado em 2014 em Ibirá, na região de São José do Rio Preto. Paleontólogos brasileiros, com apoio de uma colega suíça, utilizaram tecnologias como a tomografia computadorizada e impressão em 3D para reconstruir as estruturas da anatomia do réptil e chegar à definição de que se trata de uma nova espécie.
O estudo, que lança luzes sobre o período cretáceo no Brasil, foi publicado nesta quarta-feira, 12, na revista científica Papers and Palaeontology, da associação internacional de paleontólogos, com sede no Reino Unido. A espécie foi batizada de Amabilis uchoensis, como conta o paleontólogo Fabiano Iori, que encontrou o fóssil. "Era uma tartaruga pequena que tinha que dar seus pulos para sobreviver nos rios cretáceos entre crocodilos e dinossauros. O termo amabilis, que significa adorável em latim, é uma referência ao pequeno tamanho do animal. Já uchoensis é uma homenagem ao município de Uchoa (região de Rio Preto) por sua relevância na paleontologia regional."
Pescoço
O estudo do pequeno fóssil foi desenvolvido pelos pesquisadores Guilherme Hermanson, Gabriel Ferreira e Max Langer, da Universidade de São Paulo (USP), câmpus de Ribeirão Preto; Serjoscha Evers, da Universidade de Friburgo, na Suíça, além de Iori, responsável pelo Museu de Paleontologia de Uchoa. Especialista em fósseis de testudíneos (répteis com carapaça), Ferreira explica que tartarugas, cágados e jabutis usam como recurso de proteção o hábito de esconder a cabeça e pescoço sob o casco.
As duas maneiras como recolhem o pescoço dividem os quelônios em dois grupos: os criptódiros, que o fazem de forma vertical para dentro do casco, e os pleuródiros, que dobram lateralmente o pescoço sob o casco - caso da espécie descoberta. As análises tomográficas da Amabilis permitiram revelar aspectos pouco estudados dos pleuródiros, como a carótida, a principal artéria que irriga a cabeça do réptil. Assim, segundo Ferreira, foi possível obter um conjunto de informações que ajuda a entender a evolução dos pleuródiros num contexto mais geral das tartarugas.
De acordo com Hermanson, autor principal do estudo, a Amabilis uchoensis é a primeira espécie de tartaruga fóssil descrita para a formação São José do Rio Preto - depósitos sedimentares do Cretáceo que originaram as rochas sedimentares da região. "Apesar de (fóssil) pequeno e incompleto, foi possível explorar toda a osteologia do crânio graças ao uso da tomografia computadorizada. A técnica virtual permitiu reconstruir cavidades que abrigaram partes sensoriais do animal, como encéfalo, ouvido e canais de nervos, e vasos sanguíneos. Isso permitiu comparar as estruturas da Amabilis com as de outras tartarugas pleuródiras, ajudando a entender melhor a relação de parentesco entre os representantes desse grupo", explicou.
Ele lembra que a geologia da região sugere que o ambiente no Cretáceo era de planícies fluviais, com um sistema de rios entrelaçados. Na mesma época em que a Amabilis vivia, também havia na região dinossauros e crocodilos que provavelmente predavam tartarugas. "Era importante para a sobrevivência dessas tartarugas que elas transitassem rapidamente entre esses rios, com seu pequeno e 'amável' tamanho talvez sendo uma vantagem para elas", disse.
Uma estimativa feita pela pesquisadora Bruna Farina no laboratório da USP chegou a um casco com 12 cm de comprimento, mais 3 cm de cabeça, similar a algumas espécies atuais. "O tamanho reduzido das tartarugas desse grupo no Cretáceo brasileiro não era algo incomum, pois a Brasilemys (do Ceará) e Yuraramirim (região de Ribeirão Preto), que descrevemos há pouco tempo, tinham tamanho parecido", lembrou. O estudo, segundo ele, preenche uma lacuna na literatura em relação à anatomia dos pleuródiros. "Nosso trabalho também é importante para inspirar novos estudos", disse.
Pesquisadores utilizaram tecnologias como tomografia computadorizada e impressão em 3D para reconstruir as estruturas da anatomia da tartaruga Foto: MPPC/Divulgação / Estadão
Rios e lagos
A região de Uchoa, como outras regiões do interior paulista, vem se tornando conhecida por revelar fósseis do Período Cretáceo (entre 145 e 65 milhões de anos atrás), principalmente dos titanossauros, dinossauros herbívoros 'pescoçudos'. Os achados levaram à criação do Museu de Paleontologia Pedro Candolo, em Uchoa, intensificando os estudos e a produção acadêmica.
Segundo Iori, foi possível identificar também dinossauros carnívoros, três famílias de crocodilos, dois grupos de peixes e, agora, a tartaruga. "Sabemos que na região tínhamos um ambiente com rios e lagos, onde se concentrava grande parte da paleofauna local. Neste cenário, eram abundantes as tartarugas de água doce, sendo que restos de cascos e outros fósseis já tinham sido encontrados, mas nenhum com características preservadas que permitissem uma identificação confiável."
O estudo também confirma que a extinção que afetou muitos grupos como dinossauros e pterossauros no final do Cretáceo, não teve muito impacto no grupo das tartarugas. "O grupo passa pelo processo de extinção sem muitos problemas, o que comprova que as tartarugas são um sucesso evolutivo. Elas não mudaram muito desde a época em que a Amabilis viveu."
Ele lembra que, além de ser importante contribuição para o conhecimento dos pleuródiros, o estudo do fóssil revela mais uma espécie inédita no contexto paleontológico da região. "Pequenos fósseis podem representar grandes achados", afirmou.
Fonte: Terra
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